Deitados na cama, à meia-noite, o telefone móvel toca.
- Quem pode ser essa hora?
- Ninguém. Não vou atender.
- E se for sua mãe, você está fora da sua cidade, melhor saber quem é.
- Não me importa, você mudou minha vida, quero ficar só com você.
Por um segundo, pude imaginar que sua sobrancelha crescera e ficara branca. Não confiava naquele homem, naquele momento.
- Como assim mudei sua vida? Você é casado, não é? É ela?
- Sim, me casei há cinco anos.
Como pôde não me contar aquilo? Estávamos o final de semana internados em um quarto de hotel, vivendo as maravilhas da cidade litorânea.
- Pode atendê-la. Afinal são cinco anos...
- Não vou atender a Valéria!
E ela tinha nome, agora. O cabelo daquele homem começou a crescer junto com a sobrancelha. Aparentava agora uns 20 anos a mais, a sobrancelha era como um bigode penteado. Mas que estranho, o tempo passou sem que eu percebesse, ou seria imaginação?
De calcinha e a camiseta dele, me cobri rápido quando vi que tinha uma mulher na porta do quarto. Mas ela não olhava para nós dois, a mulher olhava para o corredor.
- Quem é?
- Ela trabalha comigo, não se lembra?
- O que faz aqui?
Não conseguia ver seu rosto ou o que acontecia lá fora, o que ela olhava? De repente um barulho intenso de bombas sendo atiradas na rua. O Rio de Janeiro é um caos constante.
- Ela espera o marido que está saindo do quarto ao lado.
A mulher saiu com sua calça jeans, e o homem mulato, seu marido alto a pegou pela cintura e caminharam para a rua. Eu queria sair dali. Quem eram aquelas pessoas? Quem era aquele homem envelhecido deitado ao meu lado na cama? Corri para o corredor, sem olhar para trás, cheguei ao saguão do hotel, a recepcionista não era mais a mocinha simpática, era uma senhora sentada com o marido já senhorzinho também, estavam encolhidos em um sofá, olhando para a parede.
- Chamem a polícia! Não me vê correndo? Não fiquem ai parados, me ajudem a sair daqui, abram a porta!
A porta não abria, as bombas se aproximavam e eles eram praticamente surdos pela velhice. Corri escadas acima, o barulho ensurdecedor parou, assim que me atirei da janela, escorregando entre vidros, cai ao chão. Levantei jogando o cabelo para trás e com as mãos limpando minhas pernas. Um homem vestido de social me segurou pelos ombros, chacoalhando meu corpo seminu dizia “Me ajude, pelo amor de Deus, me ajude!” Não posso ajudá-lo, me empreste suas calças, estou fugindo. “Corra comigo! Fugiremos juntos!”
Corremos Cândido Mendes abaixo, e nunca terminava. A rua não tinha fim, curvas de 90° me faziam doer as panturrilhas. O homem estava esbaforido, queria parar, já corria no meio da rua, passando por mim em diagonal. “Moça, continue, tenha força!” Não posso sozinha, me ajude a correr, corra comigo, venha! “Não. Chame seu animal interior, ele vai te guiar.”
Animal interior? O que ele falava, meu Deus, quem é a porra do meu animal interior? E eis que surgiu um cão preto, então gritei: Snoopy. Era preto, não como no passado, antes de sua morte. Não tinha os olhos mel, eram pretos e ele me entendia, olhava nos meus olhos e eu sentia que era necessário correr para fugir do mal que ali havia. Algo muito ruim estava acontecendo e eu precisava me livrar. Mas como? Correndo?
Corremos Cândido Mendes abaixo, entre curvas em que eu praticava Le Parkour, o cachorro me vencia e olhava para meu rosto suado, me empolgava a correr mais, me fazia cansar e pensar em outra coisa. Não pensava mais na situação do quarto, no casal de desconhecidos, no homem que precisava de ajuda, e nas bombas. Pensava apenas em meu corpo, em minha respiração, em meu animal interior que me ajudava a correr, me fortalecia, era um companheiro de fuga fenomenal, meu cachorro morto há quase 10 anos. Foi um enigma, mas finalmente terminei sorrindo, e mais uma vez vencia o medo.
8 comentários:
É genial esse animal q as vezes faz parte de nossas vidas e q por outras só esta dentro de nosso poder... É o mesmo q da força à mãe para erguer um carro prá tirar o filho debaixo ou as vezes prá t tirar dum sonho louco...Bjos
ehauehaueh sim um louco bem louco!!!
deve ser essa mudança, e os estudos, e meu corpo envelhecendo! heaeheuheuah
A transfiguração da nossa imaginação é soberba!!
Tudo é sempre possível... até o inimaginável!
ººº
Amei a narração..
PS - Espero os 'teus sapatos' ...
Muito imaginativo o texto, sem dúvida alguma!
Boa semana
A fotos dos olhos roubou meu comentário! lindo! Os 2 (textos e olhos)
precisa só de um pouco mais de um comportamento escritor. ta bom, mas não ótimo.
continue assim.
Também já tinha saudades de te ver... gostei que tivesses aparecido...
Deve ter sido um sonho... e bem atribulado... mas os sonhos têm leituras...
Gostei da forma como contaste a tua história. Não dá para parar de ler...
Querida amiga Carol, desejo-te uma boa semana.
Beijos.
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